Ritualística do poder: o povo-mito na posse de Lula
Toda ordem social, jurídica, política ou religiosa tem os seu símbolos. Naturalmente. É por meio deles que seus adeptos interpretam e significam o mundo. Mas não se trata apenas de “narrativa”. Algumas dessas simbologias servem de notas promissórias – a perder de vista – para ações concretas. Porque quem crê, age.
Vejam. Em finanças um credor é alguém que entrega mais do que recebe, empresta dinheiro e recebe uma promessa que pode se concretizar ou não (o famoso calote). Um credor é alguém que realiza uma ação em troca de uma palavra. Igualmente um crente religioso, alguém que crê, é alguém que age em troca de uma palavra – ou um símbolo. Credere, em latim, é acreditar. Daí as palavras credor, crente, crédito etc.
E justamente por isso faz parte do poder a mobilização e manipulação de símbolos. E se aquele que crê age em troca de palavras, a capacidade política de manipulação de símbolos é também a capacidade de mobilização de pessoas. Por isso não existe poder sem simbologia. Não é preciso muito esforço para resgatar um vastíssimo histórico de como cada regime mobilizou seus símbolos. Nazistas, fascistas, comunistas, cristãos, liberais, religiosos, seitas de toda sorte… cada qual com seu repertório simbólico.
E no que diz respeito à manipulação simbólica, existe um processo especial que são os ritos – e aqui se engana profundamente quem acha que rituais são coisas, digamos, primitivas. Na transição entre duas ordens simbólicas o que existe é um ritual de passagem. Entre o estado civil de solteiro e casado, existem um ritual chamado casamento. Variando entre as concepções religiosas ou não mas, de uma ou de outra forma, com seus símbolos referentes à união e ao amor. Igualmente, antes e depois de uma diplomação escolar, por exemplo, há um ritual chamado formatura. Veste-se uma roupa mais ou menos cafona, faz-se um juramento, homenageia-se algumas pessoas, fazem-se os discursos etc. Ou mesmo a passagem entre anos ou aniversários, cada qual com seus rituais.
O que existe de comum nisso tudo? Símbolos são mobilizados e manipulados para marcar a transição entre um ordenamento simbólico e outro. Ninguém casa de um dia para o outro, nem um médico se forma de um dia para o outro. É um longo processo. Mas, simbolicamente, marcamos essas mudanças com rituais para dizer: agora sim, é oficial. E a partir de então se é casado, se é médico, tem-se determinada idade ou estamos em tal ano do calendário graças aos processos rituais que marcam essa transição na ordem simbólica. Os rituais marcam também a mudança do entendimento. O mundo passa a ser entendido de outra forma após um ritual. Afinal, agora pode-se agir em função de simbologias que nos foram entregues como nota promissória dessas ações. Rituais e símbolos outorgam legitimidade às ações.
Pode parecer abstrato mas o que quero demonstrar fica mais claro quando se age no sentido contrário: ações que questionem a legitimidade de determinados símbolo. A derrubada de estátuas de colonizadores e comerciantes de escravos pelo movimento Black Lives Matter ganharam o mundo. Assim como teve ampla repercussão a versão tupiniquim da tática: Borba Gato em chamas em uma grande avenida de São Paulo. Ou então ativistas do Rio Grande do Sul que se recusam a cantar o hino do estado por considerá-lo racista, tal qual esportistas que se ajoelham contra o racismo durante a execução de hinos nacionais. Se determinadas simbologias outorgam legitimidade à determinadas ações e instituições, ao se questionar tais símbolos pretende-se questionar todas as ações e instituições legitimadas por tais. Não é a estátua do Borba Gato em si – embora horrorosa. É o questionamento do próprio poder que se pretende legitimar por tais símbolos.
Rituais políticos e simbólicos como esses – legítimos ou não – são maneiras de dizer: o mundo agora é outro. E a ordem simbólica de entendimento do mundo também é outra. O que um dia foi legítimo hoje não é mais. O que um dia foi certo, hoje é errado. E para marcar essas mudanças costumamos recorrer a simbologias rituais. Sejam elas formais e institucionalizadas ou não – como no caso das manifestações espontâneas. Mesmo que num primeiro momento não sejam entendidas como tal, acabam sendo elevadas e esse status simbólico a posteiori pela historiografia e/ou pelo imaginário popular. Determinados episódios viram marcos simbólicos de longos processos de transformação.

Igualmente o poder tem seus rituais e seus símbolos de passagem. Coroações, apertos de mãos, derrubadas de monumentos, passagem da faixa presidencial, etc. E o que aconteceu em Brasília, nesse primeiro de janeiro de 2023, foi de imenso simbolismo. Jair Bolsonaro, do alto da sua covardia e fugido para Orlando, deu de bandeja para PT uma das cenas mais marcantes das posses presidenciais desde a redemocratização. Na sua ausência, a faixa presidencial foi passada de mãos em mãos dos representantes do “povo” até ser entregue a Lula. De fato, uma cena emocionante para todos aqueles que sonham com o dia que o poder passará para às mãos dos explorados, não em gesto, mas de fato.
Existe certo populismo nisso tudo mas não posso deixar de admitir que o populismo petista, nesse quesito, é muito, mas muito superior ao populismo tacanha do bolsonarismo (que também tem seus símbolos e rituais – como o tosco café da manhã e no pão com leite-condensado). Mas ainda assim populismo. E não há aqui crítica moral a isso. Reconheço que esses pequenos gestos rituais e simbólicos são extremamente importantes para a política. Desde a revolução burguesa, quando o poder divino dos reis foi derrubado, o espaço passou a ser ocupado por um suposto povo mítico e fundador romântico: todo poder emana do povo. Sabe-se lá quem seja ou onde esteja ou porque o poder emana dele. Mas é esse símbolo sem objeto que outorga – pelo menos em um aspecto ideológico e simbólico – legitimidade e autoridade aos governos constituídos. E a cena de Lula subindo a rampa, registrada por muitos fotógrafos, tinha um quê desse povo-mítico, lembrando inclusive a famosa pintura O quarto Estado, de Giuseppe Pelizza da Volpedo (1901).

Retorno ao ponto principal: simbologias são notas promissórias para a ação política. Os marketeiros do PT (talvez a Janja tenha sua participação aí) sabem muito bem disso. Nada ali é gratuito. O que querem e ganham com isso é o apoio ativo e concreto de grupos sociais que trocam essa nota promissória por ações de fato. E pouco importa se o governo petista fará ou não o que promete com essa simbologia. Assim como nada importa de a tal caneta piauiense de 1989 era mesmo a caneta, se estava funcionando ou não ou se tudo não passou de “causo”. Não importa mesmo. A nota promissória foi jogada ao vento e há quem topou. Se haverá o calote ou não, é indiferente no momento. O PT ganha o que queria: a cena foi bonita e por isso recebe votos de confiança e apoio. Troca palavras e símbolos por ação de fato.
Rituais e simbologias são fundamentais para a constituição do poder e de suas ideologias que o sustenta. Mas não entendo – ou creio – que sejam tudo, como sugerem algumas interpretações pós-estruturalista, para as quais tudo é narrativa. A pergunta que deve ser feita é: pode o PT entregar o Brasil simbólico que performou para o retrato? Pode o poder passar das mãos do povo-mito para o povo real, para a gente de carne e osso que produz a riqueza desse país?
Talvez se você já pensou nisso antes já tenha uma resposta. E desde o meu ponto de vista é que sim, o poder pode passar para as mãos do povo real mas não será o PT a realizar esse “ritual”.
Só para não jogar argumentos ao vento, menciono a indicação de Juscelino Filho para o Ministério das Comunicações. Depois de quatro anos de obscurantismo e desinformação, o novo governo entrega o ministério nas mãos de um bolsonarista filiado a um partido base do antigo governo. Como comunicador eu me pergunto: não seria hora de recolocar na agenda a redemocratização das comunicações e a universalização do acesso à internet? Gosto de pensar que o critério da verdade é a prática e, nesse sentido, de um lado temos um ritual como nota promissória e, do outro, a entrega de ministérios ao União Brasil. É inegável a diferença entre governos e a diferença nos simbolismos mobilizados por cada um. Mas é preciso mais do que símbolos e rituais. Porque entregam notas promissórias para nós e ministérios aos ricos e poderosos de sempre?
A verdade é que a ritualística operada pelo PT ali não foi bem o “povo no poder”, como sugerem os mais apaixonados. Pelo contrário. A simbologia evocada pelo PT foi o velho mito romântico do povo fundador de todas as republicas e democracias burguesas do ocidente. No ritual performando por Lula é o povo que empresta o poder ao PT. É uma performance ritualística para legitimar-se a si mesmo – além da legitimidade real concedida pelo processo eleitoral (isso não é questionado aqui). Desde esse ponto de vista, não há absolutamente nenhuma mudança na estrutura de poder, sequer simbólica. Marca mais o fim das ameaças golpistas do bolsonarismo e um retorno a “normalidade” do regime burguês do que uma passagem de poder para o povo. Deveria essa ser a regra – mesmo para uma democracia burguesa – não fossem os disparates de Bolsonaro e dos golpistas de pijama das Forças Armadas.
Há uma sutil mas profunda diferença entre o “povo” entregar o poder a um governo e um governo entregar o poder ao “povo”.
Sou partidário confesso dos símbolos, simbologias e seus rituais. Não acho que são apenas crendices. Pensem em qual é a natureza de um ato de rua, se não uma ritualística própria das manifestações políticas – especialmente da esquerda. E ninguém há de negar que há algo de um poder concreto que emana da rua lotada cheia de bandeiras ao vento. É uma demonstração de força e, como tal, algo essencialmente simbólico. Mas que amanhã inspirará novas ações.
Mas tudo isso só tem sentido se conectado a um projeto concreto. Simbologias não podem ser desvinculadas dos seus impactos tangíveis. Hóstia não enche a barriga, diziam os punks. O povo-mito na rampa do palácio não é o povo concreto do dia-a-dia. Sair de um inferno não é entrar em um paraíso, mesmo que simbolicamente. É um alívio terminar os quatro anos desse desgoverno mas isso não significa o apoio mecânico ao novo governo. Símbolos importam, mas notas promissórias não enchem a barriga.