Monólogo escatológico sobre a dona Fátima de Tubarão, que quebrou e cagou em tudo
Tenho pensado muito sobre o que aconteceu em Brasília. Acho que todos estamos ainda, né?
Claro que para um entendimento do episódio de conjunto, em sua totalidade, existem muitos fatores econômicos, sociais, políticos e históricos para explicar porque e como chegamos a onde chegamos. Era até meio previsível, depois do Capitólio, que algo do tipo aconteceria. É aquilo: desapontado, mas não surpreso.
Mas é que tem algumas coisas ali, da maneira como aconteceu, que têm alugado um espaço e tempo enorme na minha cabeça. Não apenas porque algumas cenas foram completamente bizarras e são impossíveis de serem desvistas. Mas porque não é possível que uma coisa dessa aconteça e a única explicação seja a completa aleatoriedade num império de caos e anarquia dadaísta. Como pode Estamira e seu controle ser mais lúcida que um cidadão de bem? É preciso que cada coisa faça sentido sob o risco de que nada faça sentido. Afinal, se isso é possível, o que impede de que o céu amanheça verde? Deve haver uma explicação.
Claro, um exagero retórico. Mas, como latino-americano, pintar o mundo como realismo fantástico às vezes é mais eficiente para explicar o que sentimos diante da realidade do lado de baixo do equador.
Então eu fico me perguntando: como pode alguém esfaquear uma obra de Di Cavalcanti sem remorso? Que culpa Di teria? Por que pintaram um bigodinho no José Bonifácio? Por que dona Fátima de Tubarão, do alto dos seus 70 anos, quebrou e cagou em tudo? Aliás, o que foi aquele servidor público coma bunda de fora em cima de um móvel? Como pode, em um momento de tensão como esse, alguém ter a tranquilidade para cagar em público?
Abro meu primeiro parêntesis. No nosso português há uma rara e curiosa coincidência de duas palavras que são escritas da mesma maneira. Não são dois significados para mesma palavra. São duas palavras escritas igualmente. Escatologia, na acepção teológica, deriva do grego ÉSKHATOS, e se refere ao que acontecerá por último, ao fim dos tempos e ao apocalipse. Mas há também a escatologia que se refere ao cocô. Essa vem do grego SKATÓS. Talvez a coincidência escatológica ajude a explicar a sensação que todos nós brasileiros tínhamos sobre o governo Bolsonaro de que no final, bom, no final ia dar merda. E deu, literalmente. Fecha parêntesis.
Mas de volta ao quadro de Di Cavalcanti. Não sou dos que acham que a obra de arte tenha um valor intrínseco, pelo menos não os objetos de arte isoladamente (a Arte, com maiúscula, talvez). O que significa que, fatalmente, algumas obras são destruídas e ressignificadas ao longo da história. Já escrevi sobre a destruição de estatuas e monumentos como intervenção na ordem simbólica do discurso político. Vide os casos recentes de ativistas jogando molho de tomate em obras de museu e se colando nas paredes.

Mas será esse o caso da obra de Di?
O que me chama a atenção é que o quadro não foi destruído. Quero dizer, não havia intenção de destruí-lo como uma forma de reinterpretar o mundo, como um ato simbólico. Por que se assim quisessem, de fato, poderiam tranquilamente tê-lo feito. O que também afasta a possibilidade de que, de alguma maneira, tratou-se de uma crítica estética às obras de arte consideradas decadentes, como fizeram os Nazistas com a queima de livros em 1933 ou com a Entartete Kunst de 1937 – a famosa exposição da Arte Degenerada. Aliás, os nazistas confiscaram a “arte degenerada” ao invés de destruí-las. Inclusive vendiam alguma no exterior. Eram loucos, mas não rasgavam dinheiro. Enfim, por sorte não foi o caso de Di.
Mas foram modestas cinco perfurações aleatórias.
Aleatórias, meu Deus!
Por que diabos alguém dá cinco facadas aleatórias em uma obra de Di e vai embora?
Mas não parou por aí. Ainda teve o caso dos bigodinhos pintados nos quadros dos patriarcas da República: José Bonifácio e Duque de Caxias. Que tipo de ser auto intitulado patriota faria coisa do gênero? Não pude deixar de lembrar da minha infância nos 1990 quando, por diversão, riscávamos fotografias em revistas e velhos jornais pintando bigodinhos, óculos, chifres e deixando belos rostos sorridentes banguelas. Acho que todas as gerações -antes dos nativos digitais – já se prestaram a esse pequeno tipo de subversão estética. Até Marcel Duchamp, o dadaísta, o fez. E me refiro aqui a obra em que Duchamp pintou bigode e cavanhaque em um cartão postal com a Mona Lisa de Da Vinci e escreveu embaixo seu título: L.H.O.O.Q. Algo que pela sonoridade em francês pode ser lido como “Ela tem fogo no cu” (Elle a chaud au cul).


O que, de alguma maneira estranha, nos mantém presos ao círculo anal, sem trocadilhos – me refiro ao fato de que o cu artístico de Duchamp nos remete às cenas escatológicas do episódio em Brasília.
A infantilidade dos bigodinhos e a recorrência fecal me fazem pensar: será que existe alguma relação entre infância e escatologia (no sentido do cocô)? Obviamente que sim.
Não posso deixar de imaginar as crianças naquela fase em que a escatologia ganha status de diversão e qualquer frase que contenha as palavras pum, xixi e cocô são motivos de risos. Existem muitos livros sobre isso. Algumas crianças até competem para ver quem fala a coisa mais nojenta, estendendo o vocabulário com outros substantivos, como vômito, ou adjetivos como mole, fedido e azedo. Falar “palavras proibidas” é uma ação rebelde. De alguma maneira a escatologia (no sentido do cocô) é uma de nossas primeiras formas de desobediência social. O que faz do cu uma espécie de instrumento primordial de subversão com o qual todos nós viemos equipados de fábrica.
Aliás, já repararam na obsessão que os conservadores tem com o cu alheio?
É impressionante como a LGBTfobia costuma ser resumida na preocupação com os usos do ânus alheio, o que rende aos conservadores a alcunha de “fiscais de cu”.
Lembram de Levy Fidélix, num debate com Luciana Genro, exclamando que “aparelho excretor não reproduz”? É muita preocupação anal para dizer isso em um debate público e televisionado.

E por falar nisso, a família Bolsonaro parece ter uma grande fixação anal.
O ex-presidente coleciona declarações relacionadas às fezes como “fazer cocô um dia sim, um dia não”, “cocô de índio petrificado” (se referindo aos embargos de obras por achados arqueológicos) ou ainda a lata de leite condensado que era para “enfiar no cu de jornalista”. E, claro, o clássico, escatológico (no sentido do xixi) e carnavalesco: “o que é Golden Shower?”. Seus filhos vão por aí também. Lembremos que Carlos Bolsonaro um dia postou dizendo que enquanto a Suíça ganhava o Nobel de Química, a USP realizava congresso sobre como “dar o cu sem sentir dor”. O episódio da banheira de Nutella, escolhido pelos bolsonaristas para atacar Felipe Netto, tem forte componente infantil e escatológico. Por fim, vale lembrar do finado Olavo de Carvalho e sua obsessão permanente com o cu, com destaque para o do Caetano Veloso.


Bom, a uma altura dessas eu já estava convencido da relação entre escatologia, infância, moralismo e conservadorismo. E, pasmem, existe ampla literatura psicanalítica a respeito.
Segundo a leitura das fases de desenvolvimento psicossexual, pelo pouco que entendi, a chama Fase Anal vai ali do um aos três, quatro anos e corresponde ao momento do desfralde, em que a criança passa a ter que exercer o controle sobre os próprios esfíncteres. Desde o ponto subjetivo, da constituição da psique, a fase corresponde a introdução da criança a algumas regras sociais, morais, de decoro e de higiene, além da vergonha e, claro, da culpa, como explica Cristian Dunker em uma entrevista para o UOL.
Com perdão pela infâmia, mas eu não poderia deixar passar: é pelo cu que se introduz a moral.
Corresponde a essa fase a popularmente chamada “crise dos dois anos”, ou “adolescência do bebê”. Um momento em que a criança já dispõe de repertório vocabular para dizer “não quero / isso é meu”, se opondo à autoridade dos pais, e apresentando comportamentos egóicos, agressivos e reclamando de tudo. Em outras palavras: birra. Ora, isso acontece porque a introdução das regras morais e sociais significa, de alguma maneira, o cerceamento e regulamentação das formas de prazer o que, instintivamente, leva o sistema límbico a “se defender”, resultando em uma postura de afronta por parte da criança. Dentro dos seus limites, a criança tenta resistir às experiências de frustração com birra. Justo.
Por se tratar do momento em que passa a ser mais intensamente introduzida as regras morais, crianças que enfrentam dificuldades nessa fase ou enfrentam pais muito rígidos, tendem a ter problemas relacionados à ordem, às regras, à hierarquia e os de ventre, eventualmente.
Quero dizer, obsessivas com a ordem, com a limpeza, com a rigidez moral e hierárquica. A depender do comportamento repreensivo dos pais, pode desenvolver uma percepção predominante estética sobre como se deve comportar e parecer para ser aceita. Mais do que uma compreensão ética, que entende e tolera, dando margem para os erros. Conseguiu imaginar uma pessoa moralista? Pois bem. Há vasta literatura sobre os problemas relacionados à fase anal e o desenvolvimento de personalidades autoritárias.
Isso explicaria em partes, também, a fixação dos moralistas e conservadores, preocupados com a rigidez das normas sociais, com os usos dos cus alheios. Afinal de contas, o cu é protagonista da introdução da criança às normas morais. Nada é mais imoral para um conservador do que o livre uso do cu. Também a fixação de Bolsonaro e seus asseclas, objetiva mas também linguística, com coisas relacionadas a escatologia (no sentido do cocô) tem a ver com isso. O controle do escatológico é o fundamento da construção moral.
Ora, ora. Parece então que o círculo anal vai se fechando – sem trocadilhos.
Estariam os terroristas de Brasília regredidos a um estágio infantil? Não é uma hipótese a ser descartada. Sabe aquela sensação de que a quinta-série esteve no poder por quatro anos? Não é tão absurda assim.
Um conservador é alguém que enxerga o mundo pelo prisma da moral. Tudo é um problema moral para eles. E, nos primórdios, os problemas de moral são os problemas da regulação do cu. Então o que um terrorista conservador pode fazer de mais subversivo?
Deixar o cu livre.
Um cu livre e desregrado que bosteia tudo por onde passa. É maior afronta simbólica que um conservador pode fazer.
Então, minhas amigas e meus amigos, a ideia de que a escatologia bolsonarista (no sentido do fim dos tempos) terminasse de maneira escatológica (no sentido do cocô), não é mais um raio em céu azul.
Talvez por isso dona Fátima de Tubarão, que deve ter passado o último ano falando que tudo no mundo era culpa do Xandão, resolveu antes quebrar e cagar em tudo.
Primeiro, para extravasar a própria violência e suas tendências sádicas, como requinte de satisfação pessoal. Mas uma violência expressa de forma infantil, regredida, que quebra coisas aleatórias de forma inconsequente ou que pinta bigodinhos. Afinal de contas, a ordem para um conservador tem grande carga estética e subverter a ordem é subverter a estética, daí os bigodinhos. Segundo, cagando por tudo, porque, uma vez regredida, a maior e mais infantil afronta moral é a libertação escatológica. E, por fim, só bem depois, aparece o programa político para derrotar o STF, encarnado na figura de Alexandre de Moraes, vulgo Xandão.
– Quebrando tudo e cagando nessa bosta aqui […]
– É isso aí, dona Fátima. Deus abençoe a senhora!
– É guerra! Vamos pegar o Xandão agora!
Ufa! Me sinto aliviado agora – sem trocadilhos. Não me refiro ao fato político. Mas aos grotescos episódios individuais. Por mais estranho que pareça, é uma hipótese teórica possível para ver os fatos de Brasília e continuar achando que o universo ainda faz sentido.
Mas, para encerrar, tenho que lembrar que um ponto não foi resolvido: o da coincidência escatológica. Será que o Brasil enquanto civilização, nos fins dos tempos, vai dar merda? Seria esse uma tragédia escatológica? – agora com trocadilho. Otimista que sou, acredito que não. Nada me tira que um mundo diferente é possível. Tempos de crise são também tempos em que pode nascer o novo, como disse o intelectual sardenho.
Talvez, para isso, precisemos romper algumas pregas apenas – sem trocadilhos.